quinta-feira, 29 de setembro de 2016

#100 - ANTECIPAÇÃO, Domingos Carvalho da Silva

As patas da noite esmagam
os lírios débeis da aurora.
Por invisíveis estradas
negros cavalos galopam.
Ao longe brilham dois lagos
da cor triste de teus olhos.
Dunas de angústia se formam
nas praias frias da morte.
Agito os braços. É inútil
tentar opor à corrente
de areia e sangue, que avança,
os versos frágeis de um poema.
É inútil falar de rosas
e frutos novos e agrestes
flores, quando no peito,
cardos apenas florescem.
A aurora é doce. E anuncia
um dia calmo, entre o canto
dos pássaros e a alegria
da primavera nos campos.
Amada, não mais veremos
o dia que se levanta.
Negros cavalos galopam,
já é menor a distância...
Serão altas como nuvens,
no céu claro da manhã,
as rosas que hão-de nascer
de minha carne e teu sangue.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

#99 - "Quero falar-te deste amor, como de um vento", Maria do Rosário Pedreira

Quero falar-te deste amor, como de um vento
amordaçado na camisa; uma febre de verão
que o mercúrio não acha; um telhado esmagado
pela ideia da chuva. Quero dizer-te

que sobre ele pairaram sempre brumas e nevoeiros
e profecias de temporais maiores, como os que levam
para longe os corpos dos navios. Não há notícias

deste amor; apenas uma intriga, um recado sonâmbulo,
um temor que desmaia as pregas do vestido e um sortilégio
urdido nas paisagens suspensas de um mapa que aperto
na mão sem desdobrar. E há memórias

deste amor? A voz sem as palavras, um livro lido
às escuras, um bilhete cifrado deixado num hotel,
um velho calendário cheio de desencontros? Não,

não há memória deste amor.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

#98 - TARDE, Amorim de Carvalho

Tão tarde apareceste
na minha solidão!
Onde estiveste
quando esperei por ti?... Talvez não esperasse, talvez não!
Nunca te adivinhei. Por isso hoje não tenho um só amor
que me bendiga.
Sou como aquelas árvores sem flor,
que mal estendem os seus braços, desoladas,
aos caminhantes cheios de fadiga;
ou como aquelas árvores de sombra amiga,
mas que florescem longe das estradas.

Não me dês teu afecto. Bem sei
que não mereço, porque não te esperei.
Põe nos meus olhos teu olhar.
Não sentes medo?
Vou dizer-te -- um terrível segredo:
Não sei amar!
Eu sou como o estouvado jardineiro
que ao vento arremessou as sementes formosas
das violetas, dos lírios e das rosas,
e nunca foi capaz de florir um canteiro...
Sou como o dementado mercador, que, um dia,
abriu a sua loja,
e da porta chamando toda a gente que passa,
dos bens que possuía
se despoja,
dando tudo de graça...

Minha vida, meu sonho, minha alma -- tudo o que eu tinha, dei.
Gastei o coração, que eu supusera infindo,
no amor em que, baldadamente, a tantas outras eu amei...
E quem és tu que vens agora?... Já te reconheci:
és aquela que nunca deveria ter vindo,
pois já não tenho nada
para ti.

Deixa-me só no teu regaço repousar
minha fronte cansada,
para chorar...

terça-feira, 20 de setembro de 2016

#97 - "Mesmo que eu morra, mesmo que os anos passem,", Stepan Schipachev

Mesmo que eu morra, mesmo que os anos passem,
Mesmo que para sempre em cinzas me transforme,
Uma jovem descalça pelos campos passará
E eu me animarei, a morte superando!
Como cálida poeira roçarei suas pernas
Que a macela perfumou com seu olor.

(versão de Jorge Amado)

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

#96 - "o teu sono anoiteceu mais que a noite" (José Luís Peixoto)

o teu sono anoiteceu mais que a noite
e hei-de escrever-te sempre sem que nunca
te escreva sei as palavras que fechaste
nos olhos mas não sei as letras de as dizer
ensina-me de novo se ensinares-me for
ir ter contigo ao teu sorriso ensina-me
a nascer para onde dormes que me perco
tantas vezes numa noite demasiado pequena
para o teu sono num silêncio demasiado fundo
dormes e tento levantar a pedra que te
cobre maior que a noite o peso da pedra que
te cobre e tento encontrar-te mais uma vez
nas palavras que te dizem só para mim
o teu sono anoiteceu mais que as mortes
que posso suportar e hei-de escrever-te
sempre e mais uma vez sozinho nesta noite

terça-feira, 13 de setembro de 2016

#95 - FONTE, Herberto Helder

Ó mãe violada pela noite, deposta, disposta
agora entre águas e silêncios.
Nada te acorda -- nem as folhas dos ulmos,
nem os rios, nem os girassóis,
nem a paisagem arrebatada.
-- Espero do tempo novo todos os milagres,
menos tu.

Corres somente no meu sangue memoriado
e sobes, carne das palavras outra vez
imperecíveis e virgens.
-- Do tempo jovem espero o vinho e o pólen,
outras mãos mais puras
e mais sagazes,
e outro sexo, outra voz, outro gosto, outra virtude
inteligente.

-- Espero cobrir-te novamente de júbilo, ó corola do canto.
Mas tu estarás mais branca com a boca selada
pelas pedras lisas.
E sei que terei o amor e o pão e a água
e o sangue e as palavras e os frutos.
Mas tu , ó rosa fria,
ó odre das vinhas antigas e limpas?

Do tempo novo espero
o sinal ardente e incorrupto,
mas levo os dedos ao teu nome prolongado,
ó cerrada mãe, levo
os dedos vazios --
e a tua morte cresce por eles totalmente.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

#94 - RENÚNCIA, Manuel Bandeira

Chora de manso e no íntimo... Procura
curtir em queixa o mal que te crucia:
o mundo é sem piedade e até riria
da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria
e será, ela só, tua ventura...

A vida é vã como a sombra que passa...
Sofre sereno e d'alma sobranceira,
sem um grito sequer, tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira,
e pede humildemente a Deus que a faça
tua doce e constante companheira...

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

#93 - COLONO, João Fonseca Amaral

à memória de João Luís do Amaral

Quase perdida a memória das frias águas
escorrendo pelas encostas
bíblico fitavas esta chuva
estes ventos
estas árvores de grandes sombras.

Os caminhos da juventude entre Douro e Minho
a casa velha da quinta dos invernos
-- tudo palavras de um livro arrumado na estante
que (para o manter vivo)
de longe em longe passava pelos olhos.

Pão levedado de erros e grandezas
aos dentes da vida te deste inteiro
enquanto a cidade nascia sob os teus pés
crescia
e as raízes da rotina milímetro por milímetro
se iam afundando.

Partiste
sem te despedires
para a licençla ilimitada mais definitiva
mas entre Chamanculo e Xipamanine
o chão que pisaste
retém teu nome para sempre.

Maotas, 1953

domingo, 4 de setembro de 2016

#92 - PONTE EM RUÍNA, João de Castro Osório

A ponte, no rio
Da Vida, rompeu-se ao meio...
Ninguém nela passa...
Para além, arcos de sonho;
Aquém, arcos de desgraça.

Ponte que nem ligas
Sonho e desgraça, não mais
Me trarás ninguém,
Dos céus do sonho à tristeza,
Do mundo ao sonho de além.

Só, dentro da vida,
Sobre os inúteis pilares
Sem arcos de esp'rança,
Vejo os caminhos perdidos
No futuro e na lembrança.