quinta-feira, 24 de abril de 2014

#13 - SONETO DE AMOR, João de Barros

Tantos passaram pelo teu caminho
Antes que fosse a hora de eu passar
Que tenho a dor de me não ver sozinho
Na memória fiel do teu olhar.

Nenhum te disse frases de carinho,
Nenhum parou, talvez, para te amar...
E vão perdidos no redemoinho
Da Vida e nunca mais hão-de voltar.

Para ti, nenhum foi o mesmo que eu...
-- Mas porque a tua vista os abrangeu
Mesmo sem alegria, amor ou fé,

Deles alguma cousa em ti existe
-- Alguma cousa que me deixa triste
Porque não posso adivinhar o que é!...

segunda-feira, 21 de abril de 2014

#12 - "Era noite de inverno longa e fria", Frei Agostinho da Cruz

Era noite de inverno longa e fria,
Cobria-se de neve o verde prado;
O rio se detinha congelado,
Mudava a folha cor, que ter soía.

Quando nas palhas duma estrebaria,
Entre dois animais brutos lançado,
Sem ter outro lugar no povoado
O Menino Jesus pobre jazia.

-- Meu amor, meu amor, porque quereis
(Dizia Sua Mãe) nesta aspereza
Acrescentar-me as dores que passais?

Aqui nestes meus braços estareis;
Que, se Vos força amor sofrer crueza,
O meu não pode agora sofrer mais.

domingo, 20 de abril de 2014

#11 - "Há casas profundas", Fernando Jorge Fabião

Há casas profundas
onde resplandecem linhos desfeitos
passos de mulher
casas cheias de doçura
orações esquecidas
lâmpadas ardendo como conchas
casas com colinas de água por dentro
e contos de fadas
e anjos perplexos na caligrafia dos quartos
há casas atravessadas
por um dom luminoso e feroz
por um júbilo de rosas
e portas por abrir

Pedras Salgadas
21 de Agosto de 1999

sábado, 19 de abril de 2014

#10 - CÉU DE SAUDADES, Joaquim Gomes Mota

No céu unido dos dias como o de hoje
Que há neles que se afasta e foge?
Que é este cinzento das lousas do meu Douro
Que só encontro nas asas dos pombos bravos
Que distância me acena como leve mão de afagos
Daquela Mãe para quem eu era o seu menino de ouro.

#9 - A VIRGEM SANTÍSSIMA, Antero de Quental

Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia


Num sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

#8 - "A humidade escorre pelas paredes.", António Cândido Franco

A humidade escorre pelas paredes.
A tinta retorce-se.
Grelado nas paredes
diz a vizinha.
Certo.

Em cima da mesa
os jornais estão cheios de cotão.
Deixá-los estar.
Também lá dentro
no quarto
a minha mãe se deixa estar.
A tudo isto pertence.
É preciso não a incomodar.
Tem o coração cansado
os olhos com pó.
Caruncho, diz ela.
É verdade.
Que noite pavorosa
por esse corpo vai.

Mas sem essa noite
que seria do meu dia?
Breu?
Nada?
Horror?
Uma mãe
mesmo depois de morta
dá-nos o seio.

Que é a Via Láctea
senão o leite da nossa eterna inocência?

sexta-feira, 18 de abril de 2014

#7 - "Cada poema", Artur do Cruzeiro Seixas

Cada poema
cada desenho
são os marinheiros que navegaram na minha cama
são uma revolução não só gritada na rua
são uma flor nascendo nos campos
e é o luar e a sua magia
e é a morte que não me quer
e é UMA MULHER
surpreendente como um marinheiro
luminosa como a palavra REVOLUÇÃO
tão natural como o malmequer
tão metafísica como o luar
tão desejada como a morte hoje
A MINHA MÃE
infinita e profunda
como o mar.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

#6 - TEMPO MORTO, Rui Knopfli

Jogávamos pueris jogos de sexo, Xila,
corríamos entre girassóis,
morávamos numa cabana oculta na barreira.

Na lembrança, um cão malhado ladra
entre os arbustos.

Éramos tão crianças!, a vida nem chegava
a ser mistério
e não havia problemas de pão a resolver...
Apesar disso tu eras a mulher,
tu eras a Amante (mais subtil
e experiente de quantas tenho conhecido,
porque eras o grande livro da Inocência).
Eu era o teu herói enamorado,
tu, a minha Rainha, Senhora do talismã.
Eu era o Tarzan dos Macacos,
tu, Jane morena.
Havia a inveja de Carlos e o ciúme de Sofia,
mas isso tornava-nos maiores ainda.
Amávamos na lonjura das tardes,
enquanto Foxie dormitava a um canto da cabana.
Sobre folhas verdes de acácia
tu não eras segredo
e, em mim, não morava o mistério.
Eras um duende de tranças pretas e olhos verdes,
eu era um potro selvagem.
Éramos sexo, lábios, mãos, epidermes
sem impureza.
Partiste ao anoitecer num navio amarelo,
levando juras eternas.

Quando voltaste
tinhas crescido e o teu corpo
esboçava outras formas.
Tomaras meneios senhoris,
falavas em pecado e em criancices reprováveis
com ar judicioso.
Eras a mentira, Xila!
A muralha do Impuro interpusera-se
entre mim e ti.

Eu,
fiquei na vida de calção.
E, certa manhã sem sol,
Foxie morreu atropelado.

A minha infância é um cão malhado.
Chama-se Foxie e ladra aos passantes.
Andou por aí
solto nos matos,
dormiu nos bancos ao relento,
olhou as estrelas, sem mistério
e sem as compreender.
Seu olhar langue e sem mágoa
aceitou as carícias e os pontapés
que lhe quiseram dar.
Sabia os recantos da rua
e os segredos do baldio defronte.

Conheceu noites de cio
e dias de vagabundagem.

Foi inconsequente
e -- como já se disse
-- morreu atropelado
numa escura manhã sem data.

sábado, 12 de abril de 2014

#5 "Quando aqueles que chegavam", Mário Cesariny

Quando aqueles que chegavam
olhavam os que partiam
os que partiam choravam
os que ficavam sorriam

#4 - THE END, José do Carmo Francisco

Morrer num hospital tem destas consequências;
o velório é mais pequeno do que se fosse em casa.
Além disso os brincos desapareceram de repente
e só pensamos no telefonema perdido -- o funeral que atrasa.

Deve ser triste imaginar estes passos todos
com a raiva de não poder vencer a distância
e por entre as lágrimas abundantes começar a recordar
as primeiras páginas da história doméstica -- a infância.

No fim de contas trata-se talvez só de aritmética
esta operação que se desenrola no cemitério:
a soma das lágrimas que todos nós choramos
é igual às que ela chorou por nós -- não há mistério.

E o monte que o coveiro lentamente vai cavando
tem para mim o sentido que o momento encerra:
é um pouco de mim que desce para esta cova
nas minhas palavras misturadas com a terra.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

#3 - ELEGIA BRANCA, António Barahona

Cabelos brancos de minha mãe
Ausência branca de minha mãe

Corpo de rosa branca de minha mãe
Sangue de rosa vermelha de minha mãe

Luto carregado de lírios brancos por minha mãe
Lírios brancos carregados de luto por minha mãe

Lx. 10.V.92

quinta-feira, 10 de abril de 2014

#2 - MÃE, José Agostinho Baptista

Eu sou aquela que os vê.
E caminho pelos seus caminhos e sou a
fogueira distante.
O tempo não me apaga.
Tenho os pontos cardeais e sou a bússola nas
suas mãos,
quando eles vão sobre as águas.
Sou os mapas, a constelação, o cruzeiro do sul,
o arado, o cão,
aquela que os guarda.
Sou o regaço, as belas plumas do meu regaço,
a imensa luz de amor que cai sobre a sua
penumbra,
sobre a sua loucura.
Sou a mãe da sua vida, da sua morte.
E vou com eles, espalhando as rosas tristes,
e os meus cabelos espalham sobre os seus
cabelos as raízes brancas.
Sou aquela que escreve quando eles dormem,
sou as palavras através do sono.
E adormeço com eles,
fechando as últimas portas.

#1 - "Eras a primeira a levantar", Fernando Jorge Fabião

Para a avó Ângela


Eras a primeira a levantar
acendias o lume
moías o café
abrias as portadas

Novembro era o teu mês
e nas íntimas orações
procuravas o ouro iluminado
o refúgio onde as brasas ardiam junto ao coração

Os netos (breves relâmpagos)
atravessavam o lameiro
e pensativos adormeciam próximos das aves

Na varanda anunciavas a sabedoria do mundo
os ninhos, as cerejas, o pão pobre das palavras.