domingo, 30 de novembro de 2014

#63 - RECREIO, Alberto de Serpa

Na claridade da manhã primaveril,
Ao lado da brancura lavada da escola,
As crianças confraternizam com a alegria das aves...

A mão doce do vento afaga-lhes os cabelos,
E o sol abre-lhes rosas nas faces saudáveis
-- Um sol discreto que se esconde às vezes entre nuvens brancas...

As meninas dançam de roda e cantam
As suas cantigas simples, de sentido obscuro e incerto,
Acompanhadas de gestos senhoris e graves.

Os rapazes correm sem tino e travam lutas,
Gritam entusiasmados o amor espontâneo à vida,
A vida que vai chegando despercebida e breve...

E a jovem mestra olha todos enlevadamente,
Com um sorriso misterioso nos lábios tristes...

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

#62 "Quando o amor morrer dentro de ti", Ruy Cinatti

Quando o amor morrer dentro de ti
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

#61 - EXPERIÊNCIA, Alberto de Serpa

Nas noites negras para roubos, chuvas, ventos,
E nas noites quentes em que o luar abafava as estrelas,
À hora de os sonhos baixarem vagarosos do céu,
Alguém dobrava com uma ordem doce os meus joelhos,
Juntava as minhas mãos inocentes e fracas,
E eu rezava como se repetisse uma canção.
E o meu sono era sempre sob a guarda de estrelas...

É a vida, agora, quem dobra os meus joelhos cansados
Que guardam a marca das pedras mais rugosas,
É a angústia da vida quem junta as minhas mãos,
As minhas mãos mais fracas e incertas.
Soltam-se da minha alma orações desesperadas,
Orações que as tristezas e os dias compõem.
Se no céu há estrelas, estão lá em cima e só brilham...

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

#60 - ALMA PERDIDA, Florbela Espanca

Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, alma doente
De alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

#59 - ENLEIO, Mário Beirão

Quando, no outono, ocasos tristes douram
Ruínas que a Esperança veste de heras,
E há fluidos de perdão no olhar das feras,
E as almas só existem no que foram;

E quando os céus, proféticos, agouram
Verdades que ressurgem de quimeras;
Com grinaldas de extintas primaveras
As mãos da Morte a tua fronte enlouram!

E, pálida, sorris, embevecida;
Em teu olhar onde delira o outono
Vejo extinguir-se em luz a minha vida!

Por outros mundos a tua alma voa!
E na saudosa tarde de abandono
Um sorriso de flor nos abençoa.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

#58 - "Ah não chores por mim quando eu morrer", William Shakespeare

Ah! não chores por mim  quando eu morrer,
quando o plangente sino magoado
disser ao mundo vil que, fatigado,
com vilíssimos vermes fui viver.

Lendo estas linhas, deves esquecer
a mão saudosa que lhes deu traslado:
que o bem de perdurar num peito amado
em mal se torna quando o faz sofrer.

Não, se vires esta rima dolorida
quando a terra em seus braços me retome,
que finde o teu amor co'a minha vida,
e nem recordes o meu próprio nome!

Pois se o mundo te vê na dor absorto,
inda zomba de mim depois de morto.

 
(tradução: Luís Cardim)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

#57 - QUANDO O MEU CORPO..., Sophia de Mello Breyner Andresen

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão ao pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

#56 - "Senhor, eu vivo coitada", D. Dinis

Senhor, eu vivo coitada
vida, des quando vos non vi;
mais, pois vós queredes assi,
por Deus, senhor ben talhada,
     querede-vos de min doer
     ou ar leixade-m' ir morrer.

Vós sodes tan poderosa
de min que meu mal e meu ben
en vós é todo; [e] por en,
por Deus, mha senhor fremosa,
     querede-vos de min doer
     ou ar leixade-m' ir morrer.

Eu vivo por vós tal vida
que nunca estes olhos meus
dormen, mha senhor; e, por Deus,
que vos fez de ben comprida,
     querede-vos de min doer
     ou ar leixade-m' ir morrer.

Ca, senhor, todo m' é prazer
quanti i vós quiserdes fazer.

domingo, 16 de novembro de 2014

#55 - REENCONTRO, Joaquim Paço d'Arcos

A velha ponte-cais de traves carcomidas,
O morro triste, a antiga fortaleza...
O deserto a avançar sobre o mar
E a polvilhar a cidade pobre da sua poeira amarela...
O deserto a sepultar a cidade pobre...

As hortas do Giraul, mancha tímida e verde no areal.
O jardim emurchecido, queimado e ressequido pelo sol de África,
-- Parque frondoso que a memória guardou,
Imagem que a vida destruiu neste reencontro.
O jardinzinho da cidade,
Já sem o coreto para música,
Mas com a fileira dos espectros...

A longa, a interminável fileira dos espectros...
A Miss Blond a acompanhar os meninos a passeio,
Tigre, pachorrento e mansarrão.

Os pretos, o olhar submisso e espantado,
Com as correntes aos pés,
Na rua de casas térreas e de piso mole.
A Miss Blond deixou de acompanhar os meninos a passeio,
Tigre, erguido a cão nobre, morreu de velho,
Os pretos quebraram as correntes,
Só os espectros ficaram, pávidos,
Onde os havia deixado;
Só eles povoam a lembrança,
Habitam a cidade;
Só as suas vozes ecoam no deserto,
As vozes estremecidas,
As vozes perdidas
Na casa desabitada que a poeira do deserto cobriu,
Na vida que a poeira do tempo cobriu,
na morte, na saudade, na morte...

     Baía de Moçâmedes, 8 de Dezembro 50.

sábado, 15 de novembro de 2014

#54 - ALGUÉM, Gonçalves Crespo

Para alguém sou o lírio entre os abrolhos,
e tenho as formas ideais do Cristo,
para alguém sou a vida e a luz dos olhos,
e, se na terra existe, é porque existo.

Esse alguém, que prefere ao namorado
cantar das aves minha rude voz,
não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!

Quando alta noite me reclino e deito
melancólico, triste e fatigado,
esse alguém abre as asas no meu leito,
e o meu sono desliza perfumado.

Chovam bençãos de Deus sobre a que chora
por mim além dos mares! esse alguém
é de meus dias a esplendente aurora,
és tu, doce velhinha, ó minha mãe!

domingo, 9 de novembro de 2014

#53 - ELEGIA DE SETEMBRO, Eugénio de Andrade

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos poisados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de Setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti 
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se recordam os mortos, sem os ferir
sem os trazer a esta espuma negra
onde os corpos e corpos se repetem
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada olhando as rosas
e tão alheia
que nem dás por mim.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

#52 - O ÚLTIMO ADEUS DUM COMBATENTE, Vasco Cabral

Naquela tarde em que eu parti e tu ficaste
sentimos, fundo, os dois a mágoa da saudade.
Por ver-te as lágrimas sangrarem de verdade
sofri na alma um amargor quando choraste.

Ao despedir-me eu trouxe a dor que tu levaste!
Nem só o teu amor me traz a felicidade.
Quando parti foi por amar a Humanidade
Sim! foi por isso que parti e tu ficaste!

Mas se pensares que eu não parti e a mim te deste
será a dor e a tristeza de perder-me
unicamente um pesadelo que tiveste.

Mas se jamais do teu amor posso esquecer-me
e se fui eu aquele a quem tu mais quiseste
que eu conserve em ti a esperança de rever-me!

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

#51 - "e sequem-se-me os dedos a cabeça", Fernando Assis Pacheco

e sequem-se-me os dedos a cabeça
estoire e não fique de tudo uma palavra
se a maldição for tanta que eu te esqueça

e não reste sequer o chão e não de quantas ruas e
não já reste cidade

e seja a memória deste homem um escárnio ocultado por quinze
                                  [gerações de vindouros
com seus cães que se deitam aos pés das pessoas e parecem
                                   [adivinhar a linguagem monstruosa
das narinas resfolegando

se a maldição for tanta e tão pérfida
que eu te esqueça na morte, que eu te esqueça

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

#50 - "na hora de pôr a mesa, éramos cinco", José Luís Peixoto

na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.