quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

#84 - FOLHA SOLTA, Vicente de Carvalho

Não me culpeis a mim de amar-vos tanto,
mas a vós mesma e à vossa formosura,
pois se vos aborrece, me tortura
ver-me cativo assim do vosso encanto.

Enfadais-vos; parece-vos que, enquanto
meu amor se lastima, vos censura;
mas sendo vós comigo áspera e dura,
que eu por mim brade aos céus não causa espanto.

Se me quereis diverso do que agora
eu sou, mudai; mudai vós mesma, pois
ido o rigor que em vosso peito mora,

a mudança será para nós dois:
e então, podereis ver, minha senhora,
que eu sou quem sou por serdes vós quem sois.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

#83 - MA SEULE AMOUR, Charles d'Orléans

Ma seule amour, ma joie et ma Maîtresse,
Puisqu'il me faut loin de vous demeurer,
Je n'ai plus rien, à me réconforter,
Qu'un souvenir pour retenir liesse.

En allégeant par Espoir ma détresse,
Me conviendra le temps ainsi passer,
Ma seule amour, ma joie et ma Maîtresse,
Puisqu'il me faut loin de vous demeurer.

Car mon coeur las, bien garni de tristesse,
S'en est voulu avecques vous aller,
Et ne pourrai jamais le recouvrer
Jusques verrai votre belle jeunesse,
Ma seule amour, ma joie et ma Maîtresse.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

#82 - UMA DE NOME EMÍLIA, Mário de Oliveira

uma mulher nasceu em Trás-os-Montes
e veio dar-me à luz cá no Brasil
dela só soube o nome (e era Emília)
antes que eu mais soubesse, ela partiu.

deixou porém vagando no meu sangue
caravelas herdadas a Cabral
que inflando suas velas invisíveis
me pedem mar... distâncias... Portugal.

trazem-me estranhas, vagas nostalgias
daquilo que eu não vi nem foi sonhado,
de gentes que eu amei sem tê-las visto,
de campos que eu cruzei sem ter cruzado.

leva-me às vezes com tal força o vento
na direcção do mar, daquelas terras,
que em pensamento parto na procura
do que ficou em mim além das serras.

caminho então por vilas abstractas
em que há ruas e casas de neblina
e espero ver um vulto que me chame
detrás de alguma porta, de uma esquina.

mas nada vejo dessa sombra antiga
que o deslizar do tempo consumiu,
nada que lembre certa transmontana
que teve certo filho no Brasil.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

#81 - POEMA, Bandeira Tribuzi

Era como se fosse mas não sendo:
um súbito desvão de ser fizera
uma subida que fosse ir descendo
-- outono travestido em primavera.

Amor ou desamor? Se alguém soubera...
Mas quem acreditasse ia descrendo
e do próprio descrer o era não era
entrefechava os olhos de estar vendo.

Se a palavra foi dita, o vento ergueu-a
nos seus caminhos, tão precipitado
que foi como se fosse adivinhada.

E eu amo esta incerteza que ela deu a
meu coração maduro deserdado:
que amor sempre será coisa sonhada!

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

#80 - "Bom é que não esqueçais", Ibn Ammar

Bom é que não esqueçais
Que o que dá ao amor rara qualidade
É a sua timidez envergonhada.
Entregai-vos ao travo doce das delícias
Que filhas são dos seus tormentos.
Porém, não busqueis poder no amor...
Que só quem da sua lei se sente escravo
Pode considerar-se realmente livre.

(versão de Adalberto Alves)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

#79 - CANÇÃO, António Botto

Vem surgindo a madrugada.
Entro agora num dancing.

Numa guitarra que tange
Oiço a mágoa do meu sonho.

Há vestígios de batalha:
Nódoas de vinho,
E alguns pratos
Com restos de carne, -- e o cheiro
A tabaco e a febre e a flores
Paira
Na sala como um cansaço...

Triste,
Vou lembrando os meus amores.

Além,
Naquela mesa do fundo,
Naquela mesa redonda,
Um homem
Descasca uma tangerina
E vai beijando e mordendo
A mulher franzina e feia
Que ao pé dele fuma e sorri...

Vou lembrando os meus amores!

E até me lembro
Daqueles
Que partiram para sempre...

--Mas, não me lembro de ti.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

#78 - "Ao meu coração um peso de ferro", Camilo Pessanha

Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
      Lançá-lo ao mar.

Quem vai embarcar, que vai degredado,
As penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
      Lançai-o ao mar.

E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta...
-- A última, de antes do teu noivado.

A sete chaves, -- a carta encantada!
E um lenço bordado... Esse hei-de o levar.
Que é para o molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

#77 - ELEGIA, Aluizio de Medeiros

Não fales no filho
que não conheci.
Os olhos, disseram,
como os do pai
eram tristes;
da mãe tinha a boca
o nariz também.
Por três segundos
respirou, disseram.
Morreu depois.
O mundo deixou-lhe 
a marca, disseram, 
numa injeção que tomou.
Coberto de lágrimas
foi e não voltou.
Não fales no filho
que não conheci.