sábado, 27 de setembro de 2014

#44 - RISADAS, Gomes Leal

Soneto dum clown

Talvez cansado já dos teus abraços,
Eu morto busque um dia o céu sem metas,
E ainda vá morar nos planetas,
Eu que tenho vivido entre palhaços.

E que ali deslocando os membros lassos,
Faça com saltos e evoluções secretas,
Que Deus caia, de riso, dos espaços,
Com fortes gargalhadas dos ascetas.

Os Santos olvidando então o rito,
Darão saltos mortais no Infinito,
E eu uma claque arranjarei no Inferno.

Construirei um circo ali no Céu,
E tu virás então morar mais eu
Na água furtada azul do padre Eterno.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

#43 - "Quando ao foro subtil do pensamento", William Shakespeare

Quando ao foro subtil do pensamento
eu convoco as memórias desta vida
cheia de sonhos vãos e, revivida,
a velha dor se faz novo tormento;

Então meus olhos baços, num momento,
a mil frontes amigas dão guarida:
volto a sofrer a mágoa já cumprida,
volto a chorar os mortos que avivento...

Então meus olhos duros embrandecem,
passo de pena em pena, e vou somando
a triste soma dos que não me esquecem,
e da noite sem fim me estão fitando:

Mas se entretanto me lembrar de ti,
perdas não tive, mágoas não sofri.

(versão: Luís Cardim)

sábado, 20 de setembro de 2014

#42 - RELÍQUIA, António Patrício

Era de minha mãe: é um pobre chale
Que tem p'ra mim uma carícia de asa.
Vou-lhe pedir ainda que me fale
Da que ele agasalhou em nossa casa.

Na sua trama já puída e lassa
Deixo os meus dedos p'ra senti-la ainda;
E Ela vem, é ela que me abraça,
Fala de coisas que a saudade alinda.

É a minha mãe, mais perto, mais pertinho,
Que eu sinto quando toco o velho chale
Que guarda um não sei quê do seu carinho.

E quando a vida mais me dói, no escuro,
Sinto ao tocá-lo como alguém que embale
E beije a minha sede de amor puro.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

#41 - "Alma minha gentil, que te partiste", Luís de Camões

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos meus olhos tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te, 

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te
Quão cedo de meus olhos te levou.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

#40 - A TRISTEZA DE VIVER, Manuel Laranjeira

Ânsia de amar! Oh, ânsia de viver!
Um'hora só que seja, mas vivida
E satisfeita... e pode-se morrer,
-- Porque se morre abençoando a vida!

Mas ess'hora suprema em que se vive
Quanto possa sonhar-se de ventura,
Oh, vida mentirosa, oh, vida impura,
Esperei-a, esperei-a e nunca a tive!

E quantos como eu a desejaram!
E quantos como eu nunca a tiveram
Uma hora de amor como a sonharam!

Em quantos olhos tristes tenho eu lido
O desespero dos que não viveram
Esse sonho de amor incompreendido!

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

#39 - CANTIGA, Jorge de Aguiar

Coração, já repousavas,
Já não tinhas sujeição,
Já vivias, já folgavas;
Pois por que te sujeitavas
Outra vez, meu coração?

Sofre, pois te não sofreste
Na vida que já vivias;
Sofre, pois te tu perdeste,
Sofre, pois não conheceste
Como te outra vez perdias;

Sofre, pois já livre estavas
E quiseste sujeição;
Sofre, pois te não lembravas
Das dores de que escapavas:
Sofre, sofre, coração!

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

#38 - ENDECHAS, Júlio Dantas

Feliz de quem tem
Saudades dum bem.

Não as posso ter,
Que a saudade vem
De perder um bem,
Não dum mal perder;
Se tudo é sofrer,
Quem saudades tem
Se não teve um bem?

Tê-las cada dia
Tinha por vontade,
Porque a saudade
Faz-nos companhia:
Mas como a teria,
Se do bem nos vem
E eu não tivesse um bem!

Na vida mortal,
Se é tudo sofrer
Só poderei ter
Saudades do mal:
Ah, triste, afinal
Quem não tem ninguém,
Nem saudades tem!