terça-feira, 30 de dezembro de 2014

#69- "Quando grisalha e velha e mais de sono cheia", W. B. Yeats

Quando grisalha e velha e mais de sono cheia
Cabeceares à lareira, pega nestes versos
E lê-os devagar, e lembra os universos
Do teu olhar de outrora, tão profunda teia;

E quantos tanto amaram teu alegre encanto,
Como tua beleza em falso ou vero amor,
E um só foi quem amou de tua alma o ardor
E do teu rosto a mágoa do mutável pranto.

Curvada então ao lado das ardentes brasas
Murmura um pouco triste que o Amor se afastou.
Nos sobranceiros montes vagueante andou,
E seu rosto escondeu na multidão dos astros.

(versão de Jorge de Sena)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

#68 - LUGAR AO SOL, Eugénio de Andrade

Há um lugar na mesa onde a luz
Abdicou do seu ofício.
Já foi o sol
e do trigo esse lugar -- agora
por mais que escutes, não voltarás
a ouvir a voz de quem,
há muitos anos, era a delicadeza
da terra a falar: «Não sujes
a toalha»; «Não comes a maçã?»
Também já não há quem se debruce
Na janela para sentir
O corpo atravessado pela manhã.
Talvez só um ou outro verso
consiga juntar no seu ritmo
luz, voz, maçã.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

#67 - "O céu, a terra, o vento sossegado...", Luís de Camões

O céu, a terra, o vento sossegado...
As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...

O pescador Aónio que, deitado
Onde co o vento a água se meneia.
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não pode ser mais que nomeado:

-- Ondas, dizia, antes que Amor me mate,
Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
Me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe ao vento a voz, que ao vento deita.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

#66 - "Se eu podesse desamar", Pero da Ponte

Se eu podesse desamar
a que[n] me sempre desamou,
e podess' algun mal buscar
a quen me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

Mais non poss' eu enganar
meu coraçon, que m' enganou,
por quanto me fez desejar
a quen me nunca desejou.
E por esto non dormio eu
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

Mais rog' a Deus que desempar
a quen m' assi desamparou,
vel que podess' eu destorvar
a quen me sempre destorvou.
E logo dormiria eu,
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

Vel que ousass' eu preguntar
a quen me nunca preguntou,
por que me fez em si cuidar,
pois ela nunc' en mi cuidou.
E por esto lazeiro eu,
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

domingo, 14 de dezembro de 2014

#65 - ODE, Fernando Pessoa / Ricardo Reis

Já sobre a fronte vã se me acinzenta
O cabelo do jovem que perdi.
          Meus olhos brilham menos.
Já não tem jus a beijos minha boca.
Se me ainda amas, por amor não ames:
          Traíras-me comigo.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

#64 - SONETO DE FIDELIDADE, Vinicius de Moraes

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei-de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quanto mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

domingo, 30 de novembro de 2014

#63 - RECREIO, Alberto de Serpa

Na claridade da manhã primaveril,
Ao lado da brancura lavada da escola,
As crianças confraternizam com a alegria das aves...

A mão doce do vento afaga-lhes os cabelos,
E o sol abre-lhes rosas nas faces saudáveis
-- Um sol discreto que se esconde às vezes entre nuvens brancas...

As meninas dançam de roda e cantam
As suas cantigas simples, de sentido obscuro e incerto,
Acompanhadas de gestos senhoris e graves.

Os rapazes correm sem tino e travam lutas,
Gritam entusiasmados o amor espontâneo à vida,
A vida que vai chegando despercebida e breve...

E a jovem mestra olha todos enlevadamente,
Com um sorriso misterioso nos lábios tristes...

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

#62 "Quando o amor morrer dentro de ti", Ruy Cinatti

Quando o amor morrer dentro de ti
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

#61 - EXPERIÊNCIA, Alberto de Serpa

Nas noites negras para roubos, chuvas, ventos,
E nas noites quentes em que o luar abafava as estrelas,
À hora de os sonhos baixarem vagarosos do céu,
Alguém dobrava com uma ordem doce os meus joelhos,
Juntava as minhas mãos inocentes e fracas,
E eu rezava como se repetisse uma canção.
E o meu sono era sempre sob a guarda de estrelas...

É a vida, agora, quem dobra os meus joelhos cansados
Que guardam a marca das pedras mais rugosas,
É a angústia da vida quem junta as minhas mãos,
As minhas mãos mais fracas e incertas.
Soltam-se da minha alma orações desesperadas,
Orações que as tristezas e os dias compõem.
Se no céu há estrelas, estão lá em cima e só brilham...

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

#60 - ALMA PERDIDA, Florbela Espanca

Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, alma doente
De alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

#59 - ENLEIO, Mário Beirão

Quando, no outono, ocasos tristes douram
Ruínas que a Esperança veste de heras,
E há fluidos de perdão no olhar das feras,
E as almas só existem no que foram;

E quando os céus, proféticos, agouram
Verdades que ressurgem de quimeras;
Com grinaldas de extintas primaveras
As mãos da Morte a tua fronte enlouram!

E, pálida, sorris, embevecida;
Em teu olhar onde delira o outono
Vejo extinguir-se em luz a minha vida!

Por outros mundos a tua alma voa!
E na saudosa tarde de abandono
Um sorriso de flor nos abençoa.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

#58 - "Ah não chores por mim quando eu morrer", William Shakespeare

Ah! não chores por mim  quando eu morrer,
quando o plangente sino magoado
disser ao mundo vil que, fatigado,
com vilíssimos vermes fui viver.

Lendo estas linhas, deves esquecer
a mão saudosa que lhes deu traslado:
que o bem de perdurar num peito amado
em mal se torna quando o faz sofrer.

Não, se vires esta rima dolorida
quando a terra em seus braços me retome,
que finde o teu amor co'a minha vida,
e nem recordes o meu próprio nome!

Pois se o mundo te vê na dor absorto,
inda zomba de mim depois de morto.

 
(tradução: Luís Cardim)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

#57 - QUANDO O MEU CORPO..., Sophia de Mello Breyner Andresen

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão ao pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

#56 - "Senhor, eu vivo coitada", D. Dinis

Senhor, eu vivo coitada
vida, des quando vos non vi;
mais, pois vós queredes assi,
por Deus, senhor ben talhada,
     querede-vos de min doer
     ou ar leixade-m' ir morrer.

Vós sodes tan poderosa
de min que meu mal e meu ben
en vós é todo; [e] por en,
por Deus, mha senhor fremosa,
     querede-vos de min doer
     ou ar leixade-m' ir morrer.

Eu vivo por vós tal vida
que nunca estes olhos meus
dormen, mha senhor; e, por Deus,
que vos fez de ben comprida,
     querede-vos de min doer
     ou ar leixade-m' ir morrer.

Ca, senhor, todo m' é prazer
quanti i vós quiserdes fazer.

domingo, 16 de novembro de 2014

#55 - REENCONTRO, Joaquim Paço d'Arcos

A velha ponte-cais de traves carcomidas,
O morro triste, a antiga fortaleza...
O deserto a avançar sobre o mar
E a polvilhar a cidade pobre da sua poeira amarela...
O deserto a sepultar a cidade pobre...

As hortas do Giraul, mancha tímida e verde no areal.
O jardim emurchecido, queimado e ressequido pelo sol de África,
-- Parque frondoso que a memória guardou,
Imagem que a vida destruiu neste reencontro.
O jardinzinho da cidade,
Já sem o coreto para música,
Mas com a fileira dos espectros...

A longa, a interminável fileira dos espectros...
A Miss Blond a acompanhar os meninos a passeio,
Tigre, pachorrento e mansarrão.

Os pretos, o olhar submisso e espantado,
Com as correntes aos pés,
Na rua de casas térreas e de piso mole.
A Miss Blond deixou de acompanhar os meninos a passeio,
Tigre, erguido a cão nobre, morreu de velho,
Os pretos quebraram as correntes,
Só os espectros ficaram, pávidos,
Onde os havia deixado;
Só eles povoam a lembrança,
Habitam a cidade;
Só as suas vozes ecoam no deserto,
As vozes estremecidas,
As vozes perdidas
Na casa desabitada que a poeira do deserto cobriu,
Na vida que a poeira do tempo cobriu,
na morte, na saudade, na morte...

     Baía de Moçâmedes, 8 de Dezembro 50.

sábado, 15 de novembro de 2014

#54 - ALGUÉM, Gonçalves Crespo

Para alguém sou o lírio entre os abrolhos,
e tenho as formas ideais do Cristo,
para alguém sou a vida e a luz dos olhos,
e, se na terra existe, é porque existo.

Esse alguém, que prefere ao namorado
cantar das aves minha rude voz,
não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!

Quando alta noite me reclino e deito
melancólico, triste e fatigado,
esse alguém abre as asas no meu leito,
e o meu sono desliza perfumado.

Chovam bençãos de Deus sobre a que chora
por mim além dos mares! esse alguém
é de meus dias a esplendente aurora,
és tu, doce velhinha, ó minha mãe!

domingo, 9 de novembro de 2014

#53 - ELEGIA DE SETEMBRO, Eugénio de Andrade

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos poisados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de Setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti 
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se recordam os mortos, sem os ferir
sem os trazer a esta espuma negra
onde os corpos e corpos se repetem
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada olhando as rosas
e tão alheia
que nem dás por mim.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

#52 - O ÚLTIMO ADEUS DUM COMBATENTE, Vasco Cabral

Naquela tarde em que eu parti e tu ficaste
sentimos, fundo, os dois a mágoa da saudade.
Por ver-te as lágrimas sangrarem de verdade
sofri na alma um amargor quando choraste.

Ao despedir-me eu trouxe a dor que tu levaste!
Nem só o teu amor me traz a felicidade.
Quando parti foi por amar a Humanidade
Sim! foi por isso que parti e tu ficaste!

Mas se pensares que eu não parti e a mim te deste
será a dor e a tristeza de perder-me
unicamente um pesadelo que tiveste.

Mas se jamais do teu amor posso esquecer-me
e se fui eu aquele a quem tu mais quiseste
que eu conserve em ti a esperança de rever-me!

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

#51 - "e sequem-se-me os dedos a cabeça", Fernando Assis Pacheco

e sequem-se-me os dedos a cabeça
estoire e não fique de tudo uma palavra
se a maldição for tanta que eu te esqueça

e não reste sequer o chão e não de quantas ruas e
não já reste cidade

e seja a memória deste homem um escárnio ocultado por quinze
                                  [gerações de vindouros
com seus cães que se deitam aos pés das pessoas e parecem
                                   [adivinhar a linguagem monstruosa
das narinas resfolegando

se a maldição for tanta e tão pérfida
que eu te esqueça na morte, que eu te esqueça

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

#50 - "na hora de pôr a mesa, éramos cinco", José Luís Peixoto

na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.

domingo, 26 de outubro de 2014

#49 - POEMA CONFIADO À MEMÓRIA DE NORA MITRANI, Alexandre O'Neill

Se eu pudesse dizer-te: -- Senta aqui
nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,
ó amável bichinho, o pêlo fino;
depois, a contra-pêlo, provocar-te!
Se eu pudesse juntar o mesmo fio
(infinito colar!) cada arrepio
que aos viajeiros comprazidos dedos
fizesse descobrir novos enredos!
Se eu pudesse fechar-te nesta mão,
tecedeira fiel de tantas linhas,
de tanto enredo imaginário, vão,
e incitar alguém: -- Vê se adivinhas...
      Então um fértil jogo amor seria.
      Não este descerrar a mão vazia!

sábado, 25 de outubro de 2014

#48 - DÚVIDA, João de Barros

Este -- o soneto da Saudade inquieta
Em que, lembrando as horas de paixão,
Pergunta à Musa o sonho do Poeta
Se ela é fiel à sua adoração...

Este -- o ritmo de amor em que, discreta
E oculta e desejosa de ilusão,
Minh'alma balbucia a dor secreta
De nunca dominar teu coração...

Este -- o soneto do viver profundo,
Em que a frase mais pobre é todo um mundo
De incerteza, de mágoa e puro ardor...

Vai para ti meu coração veemente...
-- Mas tu, Amor, se existes realmente,
Nem mesmo sabes que és o meu Amor!

domingo, 19 de outubro de 2014

#47 - A UMA MULHER, Vinicius de Moraes

Quando a madrugada entrou eu estendi o meu peito nu sôbre o
                                                                                             [teu peito
Estavas trêmula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que fôste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente fôste a serenidade.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

#46 - "A meio do caminho", Helder Macedo

A meio do caminho
a mais de meia vida já vivida
reencontrei-me só na selva escura
da vida indecifrada
e não sei de que lado está a morte
e não sei se é o amor quem a sustenta
no tempo
que chegou
de destruir
para ver o que seja o que me sobra
no certo entendimento
de que as vidas são feitas
no perdê-las
ou nisso só existem
porque há vida somente quando há morte
e porque toda a selva
por mais cerrada e escura
contém o tempo já do seu deserto
na fértil luz difusa que a penetra
para nela executar o seu amor.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

#45 - AS MÃOS, Torquato da Luz

Tenho para te dar as mãos vazias
e pouco mais, mas olha como são
as minhas mãos, que outrora foram frias
e hoje ardem ao calor da emoção
de sentir como espantam as sombrias
noites em que o negrume e a solidão
eram a manta com que te cobrias.

sábado, 27 de setembro de 2014

#44 - RISADAS, Gomes Leal

Soneto dum clown

Talvez cansado já dos teus abraços,
Eu morto busque um dia o céu sem metas,
E ainda vá morar nos planetas,
Eu que tenho vivido entre palhaços.

E que ali deslocando os membros lassos,
Faça com saltos e evoluções secretas,
Que Deus caia, de riso, dos espaços,
Com fortes gargalhadas dos ascetas.

Os Santos olvidando então o rito,
Darão saltos mortais no Infinito,
E eu uma claque arranjarei no Inferno.

Construirei um circo ali no Céu,
E tu virás então morar mais eu
Na água furtada azul do padre Eterno.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

#43 - "Quando ao foro subtil do pensamento", William Shakespeare

Quando ao foro subtil do pensamento
eu convoco as memórias desta vida
cheia de sonhos vãos e, revivida,
a velha dor se faz novo tormento;

Então meus olhos baços, num momento,
a mil frontes amigas dão guarida:
volto a sofrer a mágoa já cumprida,
volto a chorar os mortos que avivento...

Então meus olhos duros embrandecem,
passo de pena em pena, e vou somando
a triste soma dos que não me esquecem,
e da noite sem fim me estão fitando:

Mas se entretanto me lembrar de ti,
perdas não tive, mágoas não sofri.

(versão: Luís Cardim)

sábado, 20 de setembro de 2014

#42 - RELÍQUIA, António Patrício

Era de minha mãe: é um pobre chale
Que tem p'ra mim uma carícia de asa.
Vou-lhe pedir ainda que me fale
Da que ele agasalhou em nossa casa.

Na sua trama já puída e lassa
Deixo os meus dedos p'ra senti-la ainda;
E Ela vem, é ela que me abraça,
Fala de coisas que a saudade alinda.

É a minha mãe, mais perto, mais pertinho,
Que eu sinto quando toco o velho chale
Que guarda um não sei quê do seu carinho.

E quando a vida mais me dói, no escuro,
Sinto ao tocá-lo como alguém que embale
E beije a minha sede de amor puro.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

#41 - "Alma minha gentil, que te partiste", Luís de Camões

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos meus olhos tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te, 

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te
Quão cedo de meus olhos te levou.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

#40 - A TRISTEZA DE VIVER, Manuel Laranjeira

Ânsia de amar! Oh, ânsia de viver!
Um'hora só que seja, mas vivida
E satisfeita... e pode-se morrer,
-- Porque se morre abençoando a vida!

Mas ess'hora suprema em que se vive
Quanto possa sonhar-se de ventura,
Oh, vida mentirosa, oh, vida impura,
Esperei-a, esperei-a e nunca a tive!

E quantos como eu a desejaram!
E quantos como eu nunca a tiveram
Uma hora de amor como a sonharam!

Em quantos olhos tristes tenho eu lido
O desespero dos que não viveram
Esse sonho de amor incompreendido!

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

#39 - CANTIGA, Jorge de Aguiar

Coração, já repousavas,
Já não tinhas sujeição,
Já vivias, já folgavas;
Pois por que te sujeitavas
Outra vez, meu coração?

Sofre, pois te não sofreste
Na vida que já vivias;
Sofre, pois te tu perdeste,
Sofre, pois não conheceste
Como te outra vez perdias;

Sofre, pois já livre estavas
E quiseste sujeição;
Sofre, pois te não lembravas
Das dores de que escapavas:
Sofre, sofre, coração!

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

#38 - ENDECHAS, Júlio Dantas

Feliz de quem tem
Saudades dum bem.

Não as posso ter,
Que a saudade vem
De perder um bem,
Não dum mal perder;
Se tudo é sofrer,
Quem saudades tem
Se não teve um bem?

Tê-las cada dia
Tinha por vontade,
Porque a saudade
Faz-nos companhia:
Mas como a teria,
Se do bem nos vem
E eu não tivesse um bem!

Na vida mortal,
Se é tudo sofrer
Só poderei ter
Saudades do mal:
Ah, triste, afinal
Quem não tem ninguém,
Nem saudades tem!

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

#37 - CORAÇÃO SELVAGEM, Luís Graça

Amores
por desbravar
eu tenho imensos

Como lagos
em fúria
nos luares

Em selvas
do coração
por descobrir

Sem raízes
que me prendam
aos lugares

5/2/98

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

#36 - ACALANTO DE JOHN TALBOT, Manuel Bandeira

Dorme, meu filhinho,
Dorme sossegado.
Dorme, que a teu lado
Cantarei baixinho.
O dia não tarda...
Vai amanhecer:
Como é frio o ar!
O anjinho da guarda
Que o Senhor te deu,
Pode adormecer,
Pode descansar,
Que te guardo eu.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

#35 - CREPUSCULAR, António de Sousa

Tive uma rosa de fogo
A arder no meu coração.
Ganhou-ma o destino ao jogo
De dias que já lá vão.

-- Rosa vermelha de esperança,
A estas horas sem cor,
Porque me vens à lembrança
Como pecado de amor?

(Cansados, cansam-me passos
Que não dei... por me cansar.
Levo, pesados, nos braços
Os restos dum sonho ao mar.)

domingo, 17 de agosto de 2014

#34 - "Que assim sai a manhã, serena e bela!", João Xavier de Matos

Que assim sai a manhã, serena e bela!
Como vem no horizonte o sol raiando!
Já se vão os outeiros divisando,
já no céu se não vê nenhuma estrela.

Como se ouve na rústica janela
do pátrio ninho o rouxinol cantando!
Já lá vai para o monte o gado andando,
já começa o barqueiro a içar a vela.

A pastora acolá, por ver o amante,
com o cântaro vai à fonte fria;
cá vem saindo alegre o caminhante;

Só eu não vejo o rosto da alegria:
que enquanto de outro sol morar distante,
não há-de para mim nascer o dia.

sábado, 16 de agosto de 2014

#33 - CHORO, Ermelinda Pereira Xavier

Ai barco que me levasse
a um Rio que me engolisse
donde eu não mais regressasse
p'ra que mais ninguém me visse!

Ai barco que me levasse
sem vela ou remos, nem leme
p'ra dentro de todo o olvido
onde não se ama nem teme.

Ai barco que me levasse
aos tesouros conquistados
por entre esquinas de perigos
dos mil caminhos trilhados.

Ai -- onde? -- que me levasse
bem dentro de um vendaval...
Barco berço, barco esquife
onde tudo fosse igual:

Ai barco que me levasse
toda estendida em seu fundo!
Nesga de céu a bastar-me
toda a saudade do mundo!

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

quinta-feira, 31 de julho de 2014

#31 - "Ao meu cão bastaria um tapete", Joel Henriques

Ao meu cão bastaria um tapete
macio para se deitar
e um lugar onde possa dormir
perto do chão e durante a ferida.

Apenas procura aquele afecto
que torna possível continuar
sem evitar o respirar e a terra.

Encontra o esquecimento
sempre no fim de tudo
quando já não existe o esperado
perdido no labirinto das ruas.

Deixarei de o ouvir pela casa,
cairão os muros e os impérios
e o meu cão terá sempre um tapete.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

#30 - AQUELA CANÇÃO FATAL, Rebelo de Bettencourt

A horas mortas da noite,
Canta uma voz de mulher...
Não sei que drama adivinho
Na sua canção qualquer!

Quem canta assim, altas horas,
E acorda a rua tranquila?
Faz-me pena essa canção
E, entanto, gosto de ouvi-la!

É uma canção de amor,
Pobre, anónima, vulgar.
Mas é cheia de amargura:
Escuto-a e dá-me em chorar!

Recordo, então, o passado,
Que julgava morto em mim.
-- Coração, porque acordaste?
-- Ó dor, porque não tens fim?

-- Porque acordaste, passado,
Porque voltaste, afinal?
-- Maldita a hora em que ouvi
Aquela canção fatal!

Cala-te, voz doce e triste,
Deixa, por Deus, de cantar!
Dorme, dorme, coração,
Não tornes mais a acordar!

terça-feira, 15 de julho de 2014

#29 - CANÇÃO DA VIDA, Alberto Osório de Castro

Dias do passado,
Sonhos a findar,
Coração magoado
Que vai sossegar,
Fica a suspirar
De vos ter lembrado,
Sonhos a findar,
Dias do passado!

Passa o vento irado,
Já troveja o mar.
Coração magoado,
Tempo é de parar.
Deixá-los passar
Nesse vento irado,
Nos trovões do mar.

Nada há-de restar
Do tempo passado
Que te fez sangrar,
Coração magoado.
Quando clarear
Tudo está mudado.
É também mudar,
Coração magoado.

Nada há-de restar.

terça-feira, 8 de julho de 2014

#28 - CDC/DCD, Ruy Belo

A natureza em conjunto padece
e como o sofrimento muito a cansa
vinga-se em quem primeiro lhe aparece
e para ser maior essa vingança
já a futura morte transparece
no pequenino rosto da criança.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

#27 - MORS SANCTA, João Saraiva

Na humilde cela, onde em perfume casto
O luar esbate, merencório e brando,
Vai-lhe fugir o espírito, beijando
A negra cruz do seu rosário gasto...

Como num sonho tumular, nefasto,
Corvos que passam pela noite, em bando,
Trazem-lhe a morte lívida, cortando
O fundo azul silencioso e vasto...

Em prata líquida o luar escorre
Pelo fio das trémulas espadas
Que esgrime ao vento o canavial do rio...

E, quando, o brilho das estrelas morre,
O monge cerra as pálpebras molhadas,
Levando ao lábio o rosário frio...

sexta-feira, 4 de julho de 2014

#26 - TEJO, Maria Augusta Silva

O Tejo não era rio, era um cão grande.
Mordia a terra se não ouvia o avô cantar
entre as searas. Ladrava ao céu
ladrava e criava subterfúgios dramáticos.
Eu pensava: está bêbedo. As pessoas
também arranham as sombras do corpo
quando estão bêbedas. Houve
uma páscoa em que o Tejo não arranhou
a sombra não mordeu a terra. Enrolou-se
numa paisagem de cinza. Ficou assim
a vida inteira. E eu a dizer a vida inteira:
creio nas saudades dos cães.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

#25 - ROSAS E CANTIGAS, Afonso Duarte

Eu hei-de despedir-me desta lida,
Rosas? -- Árvores! hei-de abrir-vos covas
E deixar-vos ainda quando novas?
Eu posso lá morrer, terra florida!

A palavra de adeus é a mais sentida
Deste meu coração cheio de trovas...
Só bens me dê o céu! eu tenho provas
Que não há bem que pague o desta vida.

E os cravos, manjerico, e limonete,
Oh! que perfume dão às raparigas!
Que lindos são nos seios do corpete!

Como és, nuvem dos céus, água do mar,
Flores que eu trato, rosas e cantigas,
Cá, do outro mundo, me fareis voltar.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

#24 - THE GRAVE, Anónimo (séc. XIII)

Já tinhas pronta uma casa
inda estavas por nascer;
não é alta nem folgada,
mal te podes estender;
o tecto não se alevanta,
fica em cima do teu peito;
é à justa o comprimento
por tua medida feito;
as paredes são de terra
talhadinha com cautela;
não tem postigo nem porta
nem poderás sair dela;
chamas pelos teus amigos,
nenhum quedou a teu lado;
ninguém virá de mansinho
ver se dormes descansado:
pois só os vermes, aí
na pousada negra e fria,
não terão nojo de ti
e te farão companhia.
(versão de Luís Cardim)

#23 - CANTIGA: PARTINDO-SE, João Roiz de Castelo Branco

Senhora, partem tão tristes
Meus olhos por vós, meu bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
Tão doentes da partida,
Tão cansados, tão chorosos,
Da morte mais desejosos
Cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
Tão fora de esperar bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

domingo, 8 de junho de 2014

#22 - "Se apartada do corpo a doce vida", Anónima (século XVII)

Se apartada do corpo a doce vida,
Domina em seu lugar a dura morte,
De que nasce tardar-me tanto a morte,
Se ausente d'alma estou, que me dá vida?

Não quero sem Silvano já ter vida,
Pois tudo sem Silvano é viva morte;
Já que se foi Silvano venha a morte,
Perca-se por Silvano a minha vida.

Ah! Suspirado ausente, se esta morte
Não te obriga a querer vir dar-me vida,
Como não me vem dar a mesma morte?

Mas se n'alma consiste a própria vida,
Bem sei que se me tarda tanto a morte
Que é porque sinta a morte de tal vida.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

#21 - "Conheço o turismo dos cemitérios.", José Emílio-Nelson

Conheço o turismo dos cemitérios.
Que pouco importa a morte comendo a terra,
Já se ouviu dizer. A que vens?
Ao loureiro umbroso mais a purpúrea hera
A crescer para o céu fascista (de Pound).
À campa (de Morrison)
Aplanada, danificada,
Vigiado por polícias todos crentes
Na ressurreição dos mortos.

sábado, 31 de maio de 2014

#20 - "Já era nela, antes de ser paixão", Abu al-Abdari

Já era nela, antes de ser paixão, 
Inquietude em cada momento,
O amor já era dono do seu coração
Ainda antes de sentir o seu tormento.

(versão de Adalberto Alves)

segunda-feira, 26 de maio de 2014

#19 - "Há na intimidade um limiar sagrado", Anna Akhmátova

Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor --
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
a vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes por que já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.

(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)

sábado, 17 de maio de 2014

#18 - POEMA DE FINADOS, Manuel Bandeira

Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero,
E em verdade estou morto ali.

terça-feira, 13 de maio de 2014

#17 - MEMÓRIA DE MINHA MÃE, José Carlos González

Por que razão sempre pensei que fosses
mulher fria hierática distante
igual aos teus antepassados de Covadonga
aos celtas híbridos de Iberos
e que os teus cabelos muito jovens brancos
sinal fossem de tudo isso?

Por que razão sempre te amei tão pouco
quando amar-te era o meu mais fundo desejo
saber que quando rias era verdade
como as rias da nossa Galiza
e os recifes abruptos da velha Astúrica?

Agora que estás longe longe de mais

os teus olhos secos a tua pele com algumas sardas
o teu andar vagaroso mas vivo
agora que tudo isso é uma ideia um repouso
forçado num pequeno cemitério chamado Xiesteira

talvez comece a saber que não eras uma mulher fria
e que me amavas porventura muito
à tua hierática maneira

quarta-feira, 7 de maio de 2014

#16 - MINHA MÃE, Thales de Melo


Alguém há, coração de bondade e candura,
Que o meu tormento e as minhas mágoas amortece.
Para quem minha voz tem a maior ternura.
Para quem o meu nome é um resumo de prece.

Alguém que me acompanha e sofre e se tortura,
Se me torturo e sofro. Alguém que não me esquece;
Que faz do meu prazer toda a sua ventura;
Que se alegra comigo e comigo entristece.

Alguém que me adivinha os menores desejos;
Que sorri, se sorrio; e se desfaz em beijos;
E, feliz, me abençoa em seu amor profundo.

Alguém que se revê nos meus olhos sem brilho;
Alguém que tem orgulho em me chamar de filho:
-- Minha Mãe, doce Mãe que Deus me deu no mundo.

domingo, 4 de maio de 2014

#15 - CERTIDÃO DE NASCIMENTO, David Mourão-Ferreira

Tão regaço estas arcadas
Tão de brinquedo os eléctricos
Vejo a cidade parada
no ano de vinte e sete
Dela por vezes me evado
mas sempre a ela regresso
Bem sei eu que não desato
o cordão com que me aperta
Vejo seus gestos de grávida
medidos cautos emersos
nessa jovem gravidade
que só grávidas conhecem
Que frescor de madrugada
no terror com que me espera
Mas têm sempre a idade
que em sonho os filhos decretam
Recordo melhor a data
Até mesmo a atmosfera
É o dia vinte e quatro
de um mês a tremer de febre
com armas grades e o rasto
de um sangue que nunca seca
Só seis decénios passaram
rápidos como seis séculos
Tão pouco Mas neles cabem
cidades arcadas eléctricos
nesta imensa claridade
irmã gémea do mistério

sábado, 3 de maio de 2014

#14 - "Chegaram os pacotes com as cartas", Helder Macedo

Chegaram os pacotes com as cartas
os retratos os mapas os papéis
o que sobrou dos gestos e das almas
sem excessivo valor comercial.

Os outros preferiram os dejectos
e lá se engalfinharam nas heranças
computando os seus lucros e rancores
mudando fechaduras e pretextos.

Há pessoas que morrem duas vezes.
Para a primeira morte estava pronta
na segunda ficou possessa de ódio
pois soubera morrer e não deixaram.

Mandou que preparassem dois enterros
um para cada morte e cada vida
o primeiro com flores maternais
no segundo desfez o corpo em cinza.

Vejo-a agora de novo nos retratos
a mãe menina segurando rosas
o braço comatoso a acalentar-me
o inverno a nascer da primavera.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

#13 - SONETO DE AMOR, João de Barros

Tantos passaram pelo teu caminho
Antes que fosse a hora de eu passar
Que tenho a dor de me não ver sozinho
Na memória fiel do teu olhar.

Nenhum te disse frases de carinho,
Nenhum parou, talvez, para te amar...
E vão perdidos no redemoinho
Da Vida e nunca mais hão-de voltar.

Para ti, nenhum foi o mesmo que eu...
-- Mas porque a tua vista os abrangeu
Mesmo sem alegria, amor ou fé,

Deles alguma cousa em ti existe
-- Alguma cousa que me deixa triste
Porque não posso adivinhar o que é!...

segunda-feira, 21 de abril de 2014

#12 - "Era noite de inverno longa e fria", Frei Agostinho da Cruz

Era noite de inverno longa e fria,
Cobria-se de neve o verde prado;
O rio se detinha congelado,
Mudava a folha cor, que ter soía.

Quando nas palhas duma estrebaria,
Entre dois animais brutos lançado,
Sem ter outro lugar no povoado
O Menino Jesus pobre jazia.

-- Meu amor, meu amor, porque quereis
(Dizia Sua Mãe) nesta aspereza
Acrescentar-me as dores que passais?

Aqui nestes meus braços estareis;
Que, se Vos força amor sofrer crueza,
O meu não pode agora sofrer mais.

domingo, 20 de abril de 2014

#11 - "Há casas profundas", Fernando Jorge Fabião

Há casas profundas
onde resplandecem linhos desfeitos
passos de mulher
casas cheias de doçura
orações esquecidas
lâmpadas ardendo como conchas
casas com colinas de água por dentro
e contos de fadas
e anjos perplexos na caligrafia dos quartos
há casas atravessadas
por um dom luminoso e feroz
por um júbilo de rosas
e portas por abrir

Pedras Salgadas
21 de Agosto de 1999

sábado, 19 de abril de 2014

#10 - CÉU DE SAUDADES, Joaquim Gomes Mota

No céu unido dos dias como o de hoje
Que há neles que se afasta e foge?
Que é este cinzento das lousas do meu Douro
Que só encontro nas asas dos pombos bravos
Que distância me acena como leve mão de afagos
Daquela Mãe para quem eu era o seu menino de ouro.

#9 - A VIRGEM SANTÍSSIMA, Antero de Quental

Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia


Num sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

#8 - "A humidade escorre pelas paredes.", António Cândido Franco

A humidade escorre pelas paredes.
A tinta retorce-se.
Grelado nas paredes
diz a vizinha.
Certo.

Em cima da mesa
os jornais estão cheios de cotão.
Deixá-los estar.
Também lá dentro
no quarto
a minha mãe se deixa estar.
A tudo isto pertence.
É preciso não a incomodar.
Tem o coração cansado
os olhos com pó.
Caruncho, diz ela.
É verdade.
Que noite pavorosa
por esse corpo vai.

Mas sem essa noite
que seria do meu dia?
Breu?
Nada?
Horror?
Uma mãe
mesmo depois de morta
dá-nos o seio.

Que é a Via Láctea
senão o leite da nossa eterna inocência?

sexta-feira, 18 de abril de 2014

#7 - "Cada poema", Artur do Cruzeiro Seixas

Cada poema
cada desenho
são os marinheiros que navegaram na minha cama
são uma revolução não só gritada na rua
são uma flor nascendo nos campos
e é o luar e a sua magia
e é a morte que não me quer
e é UMA MULHER
surpreendente como um marinheiro
luminosa como a palavra REVOLUÇÃO
tão natural como o malmequer
tão metafísica como o luar
tão desejada como a morte hoje
A MINHA MÃE
infinita e profunda
como o mar.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

#6 - TEMPO MORTO, Rui Knopfli

Jogávamos pueris jogos de sexo, Xila,
corríamos entre girassóis,
morávamos numa cabana oculta na barreira.

Na lembrança, um cão malhado ladra
entre os arbustos.

Éramos tão crianças!, a vida nem chegava
a ser mistério
e não havia problemas de pão a resolver...
Apesar disso tu eras a mulher,
tu eras a Amante (mais subtil
e experiente de quantas tenho conhecido,
porque eras o grande livro da Inocência).
Eu era o teu herói enamorado,
tu, a minha Rainha, Senhora do talismã.
Eu era o Tarzan dos Macacos,
tu, Jane morena.
Havia a inveja de Carlos e o ciúme de Sofia,
mas isso tornava-nos maiores ainda.
Amávamos na lonjura das tardes,
enquanto Foxie dormitava a um canto da cabana.
Sobre folhas verdes de acácia
tu não eras segredo
e, em mim, não morava o mistério.
Eras um duende de tranças pretas e olhos verdes,
eu era um potro selvagem.
Éramos sexo, lábios, mãos, epidermes
sem impureza.
Partiste ao anoitecer num navio amarelo,
levando juras eternas.

Quando voltaste
tinhas crescido e o teu corpo
esboçava outras formas.
Tomaras meneios senhoris,
falavas em pecado e em criancices reprováveis
com ar judicioso.
Eras a mentira, Xila!
A muralha do Impuro interpusera-se
entre mim e ti.

Eu,
fiquei na vida de calção.
E, certa manhã sem sol,
Foxie morreu atropelado.

A minha infância é um cão malhado.
Chama-se Foxie e ladra aos passantes.
Andou por aí
solto nos matos,
dormiu nos bancos ao relento,
olhou as estrelas, sem mistério
e sem as compreender.
Seu olhar langue e sem mágoa
aceitou as carícias e os pontapés
que lhe quiseram dar.
Sabia os recantos da rua
e os segredos do baldio defronte.

Conheceu noites de cio
e dias de vagabundagem.

Foi inconsequente
e -- como já se disse
-- morreu atropelado
numa escura manhã sem data.