domingo, 29 de março de 2015

#90 - "A saudade vindoira espero-a, pois, agora", Alphonsus de Guimaraens

A saudade vindoira espero-a, pois, agora
Que acho o presente em rosas brancas desfolhado,
Mais um ano, dois, três, e hoje será outrora
E todo este fulgor é a sombra do passado.

Chorarei, e não mais hei-de rever a aurora
Que surgiu dentro em mim como um sonho doirado.
Foi este o dia, em tal distante, em tal hora,
E revejo-me só, sem ninguém a meu lado.

Mas depois, uma nova ilusão erradia
Vem buscar-me no grande ermo em que estou: floresce
De novo o lírio azul na floresta sombria.

Um cisne, erguendo o colo ebúrneo, esbelto o porte
Virginal, exaltado ao céu, canta uma prece...
Pobre alma! o sonho foi-se, e afinal surge a morte.

A dor imaterial que magoa o teu riso,
Ténue, pairando à flor dos lábios, tão de leve,
Faz-me sempre pensar em tudo que é indeciso:
Luares, pores-de-sol, cousas que morrem breve.

quinta-feira, 26 de março de 2015

#89 - ONDE?, João Saraiva

Tão longe como estás, ó meu desejo,
Quando a noite gelada se avizinha,
Se tu és Dor, ao pé de mim te vejo...

Trajas um manto negro de rainha
E, silenciosa como a sombra, choras
Pousando sempre a tua mão na minha!

Vens de tão longe nas caladas horas!
Se tu és Pranto, esse leal amigo,
E no meus olhos que de noite moras...

Tens neste amargo peito um doce abrigo!
Se estás longe de mim e eu não te alcanço,
Não és pranto nem Dor! Mas, se és Descanso,
Onde te ocultas que não dou contigo?

quinta-feira, 19 de março de 2015

#88 - SOBRE O LINHO, José Jorge Letria

A avó inclina-se sobre o linho
guarda estrelas no cesto do carvão
com as mãos gretadas pelo gelo das manhãs
pelos cristais de água da estação das chuvas

As histórias que conta são
as do assombro e da claridade ofuscada
pelo rasto dos cometas

Vorazes são os lobos insones
à beira dos portões da infância:
as crianças voam para o céu

Vejo-a arquejante sobre as almofadas
com a primavera agonizando nas janelas

quarta-feira, 11 de março de 2015

#87 - DESGOSTOSA, António Fogaça

O seu riso gentil que ainda me arrasta,
Como quem vai seguindo no deserto
Os raios dum clarão que julga perto,
Mas que a segui-lo toda a vida gasta;

Sua voz, seu olhar, sua alma casta,
Todo esse altivo e festival concerto
-- Brancas formas de luz que ao seio aperto
Sonhadamente, numa dor nefasta...

Esse porte de brilho e majestade,
E o seu modo de ser, doce e honesto,
Tudo a sombra da Mágoa, sem piedade,

Velou, tocando-a com seu ar funesto!
Nunca eu sonhasse, ó íntima saudade,
Seu riso, voz, olhar e alma e gesto!...

quarta-feira, 4 de março de 2015

#86 - CANTIGA SUA QUE OFERECE À DITA SENHORA COM ESTAS RAZÕES ALEGADAS., Nuno Pereira

   Que saibais que um de nós
senhora por vós suspira
do cuidado que ele tira,
eu o tenho já por vós.

    Eu o tenho já senhora
pera nele padecer,
quem se dele tira fora
mais deseja de viver.
Qual merece mais de nós,
ele em quanto suspira,
ou eu de quem se não tira
cuidado que vem de vós.

terça-feira, 3 de março de 2015

#85 - MUDEZ, Torquato da Luz

Quando por fim voltares, traz no olhar
a nesga de areal onde algum dia
te encontrei entre a espuma e a maresia,
passeando a surpresa de haver mar.

Traz também nos cabelos o luar
e deixa que o veneno da poesia
nos envenene aos dois em sintonia,
como exige o mistério do lugar.

Talvez assim eu possa finalmente
segredar-te as palavras que não soube
dizer-te no momento em que te vi

pela primeira vez e, de repente,
o mundo foi tão grande que não coube
na minha voz e logo emudeci.