quinta-feira, 30 de abril de 2015

#91 - RENÚNCIA, Alberto de Lacerda

Deixei enfim de pedir
Eternidade ao amor

Aceito o ritmo sem ritmo
Que há por dentro desse ritmo
Que não se vê não se ouve
Mas eu sinto deslumbrado
Quando os teus olhos acendem
Os corredores da noite

domingo, 29 de março de 2015

#90 - "A saudade vindoira espero-a, pois, agora", Alphonsus de Guimaraens

A saudade vindoira espero-a, pois, agora
Que acho o presente em rosas brancas desfolhado,
Mais um ano, dois, três, e hoje será outrora
E todo este fulgor é a sombra do passado.

Chorarei, e não mais hei-de rever a aurora
Que surgiu dentro em mim como um sonho doirado.
Foi este o dia, em tal distante, em tal hora,
E revejo-me só, sem ninguém a meu lado.

Mas depois, uma nova ilusão erradia
Vem buscar-me no grande ermo em que estou: floresce
De novo o lírio azul na floresta sombria.

Um cisne, erguendo o colo ebúrneo, esbelto o porte
Virginal, exaltado ao céu, canta uma prece...
Pobre alma! o sonho foi-se, e afinal surge a morte.

A dor imaterial que magoa o teu riso,
Ténue, pairando à flor dos lábios, tão de leve,
Faz-me sempre pensar em tudo que é indeciso:
Luares, pores-de-sol, cousas que morrem breve.

quinta-feira, 26 de março de 2015

#89 - ONDE?, João Saraiva

Tão longe como estás, ó meu desejo,
Quando a noite gelada se avizinha,
Se tu és Dor, ao pé de mim te vejo...

Trajas um manto negro de rainha
E, silenciosa como a sombra, choras
Pousando sempre a tua mão na minha!

Vens de tão longe nas caladas horas!
Se tu és Pranto, esse leal amigo,
E no meus olhos que de noite moras...

Tens neste amargo peito um doce abrigo!
Se estás longe de mim e eu não te alcanço,
Não és pranto nem Dor! Mas, se és Descanso,
Onde te ocultas que não dou contigo?

quinta-feira, 19 de março de 2015

#88 - SOBRE O LINHO, José Jorge Letria

A avó inclina-se sobre o linho
guarda estrelas no cesto do carvão
com as mãos gretadas pelo gelo das manhãs
pelos cristais de água da estação das chuvas

As histórias que conta são
as do assombro e da claridade ofuscada
pelo rasto dos cometas

Vorazes são os lobos insones
à beira dos portões da infância:
as crianças voam para o céu

Vejo-a arquejante sobre as almofadas
com a primavera agonizando nas janelas

quarta-feira, 11 de março de 2015

#87 - DESGOSTOSA, António Fogaça

O seu riso gentil que ainda me arrasta,
Como quem vai seguindo no deserto
Os raios dum clarão que julga perto,
Mas que a segui-lo toda a vida gasta;

Sua voz, seu olhar, sua alma casta,
Todo esse altivo e festival concerto
-- Brancas formas de luz que ao seio aperto
Sonhadamente, numa dor nefasta...

Esse porte de brilho e majestade,
E o seu modo de ser, doce e honesto,
Tudo a sombra da Mágoa, sem piedade,

Velou, tocando-a com seu ar funesto!
Nunca eu sonhasse, ó íntima saudade,
Seu riso, voz, olhar e alma e gesto!...

quarta-feira, 4 de março de 2015

#86 - CANTIGA SUA QUE OFERECE À DITA SENHORA COM ESTAS RAZÕES ALEGADAS., Nuno Pereira

   Que saibais que um de nós
senhora por vós suspira
do cuidado que ele tira,
eu o tenho já por vós.

    Eu o tenho já senhora
pera nele padecer,
quem se dele tira fora
mais deseja de viver.
Qual merece mais de nós,
ele em quanto suspira,
ou eu de quem se não tira
cuidado que vem de vós.

terça-feira, 3 de março de 2015

#85 - MUDEZ, Torquato da Luz

Quando por fim voltares, traz no olhar
a nesga de areal onde algum dia
te encontrei entre a espuma e a maresia,
passeando a surpresa de haver mar.

Traz também nos cabelos o luar
e deixa que o veneno da poesia
nos envenene aos dois em sintonia,
como exige o mistério do lugar.

Talvez assim eu possa finalmente
segredar-te as palavras que não soube
dizer-te no momento em que te vi

pela primeira vez e, de repente,
o mundo foi tão grande que não coube
na minha voz e logo emudeci.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

#84 - FOLHA SOLTA, Vicente de Carvalho

Não me culpeis a mim de amar-vos tanto,
mas a vós mesma e à vossa formosura,
pois se vos aborrece, me tortura
ver-me cativo assim do vosso encanto.

Enfadais-vos; parece-vos que, enquanto
meu amor se lastima, vos censura;
mas sendo vós comigo áspera e dura,
que eu por mim brade aos céus não causa espanto.

Se me quereis diverso do que agora
eu sou, mudai; mudai vós mesma, pois
ido o rigor que em vosso peito mora,

a mudança será para nós dois:
e então, podereis ver, minha senhora,
que eu sou quem sou por serdes vós quem sois.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

#83 - MA SEULE AMOUR, Charles d'Orléans

Ma seule amour, ma joie et ma Maîtresse,
Puisqu'il me faut loin de vous demeurer,
Je n'ai plus rien, à me réconforter,
Qu'un souvenir pour retenir liesse.

En allégeant par Espoir ma détresse,
Me conviendra le temps ainsi passer,
Ma seule amour, ma joie et ma Maîtresse,
Puisqu'il me faut loin de vous demeurer.

Car mon coeur las, bien garni de tristesse,
S'en est voulu avecques vous aller,
Et ne pourrai jamais le recouvrer
Jusques verrai votre belle jeunesse,
Ma seule amour, ma joie et ma Maîtresse.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

#82 - UMA DE NOME EMÍLIA, Mário de Oliveira

uma mulher nasceu em Trás-os-Montes
e veio dar-me à luz cá no Brasil
dela só soube o nome (e era Emília)
antes que eu mais soubesse, ela partiu.

deixou porém vagando no meu sangue
caravelas herdadas a Cabral
que inflando suas velas invisíveis
me pedem mar... distâncias... Portugal.

trazem-me estranhas, vagas nostalgias
daquilo que eu não vi nem foi sonhado,
de gentes que eu amei sem tê-las visto,
de campos que eu cruzei sem ter cruzado.

leva-me às vezes com tal força o vento
na direcção do mar, daquelas terras,
que em pensamento parto na procura
do que ficou em mim além das serras.

caminho então por vilas abstractas
em que há ruas e casas de neblina
e espero ver um vulto que me chame
detrás de alguma porta, de uma esquina.

mas nada vejo dessa sombra antiga
que o deslizar do tempo consumiu,
nada que lembre certa transmontana
que teve certo filho no Brasil.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

#81 - POEMA, Bandeira Tribuzi

Era como se fosse mas não sendo:
um súbito desvão de ser fizera
uma subida que fosse ir descendo
-- outono travestido em primavera.

Amor ou desamor? Se alguém soubera...
Mas quem acreditasse ia descrendo
e do próprio descrer o era não era
entrefechava os olhos de estar vendo.

Se a palavra foi dita, o vento ergueu-a
nos seus caminhos, tão precipitado
que foi como se fosse adivinhada.

E eu amo esta incerteza que ela deu a
meu coração maduro deserdado:
que amor sempre será coisa sonhada!

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

#80 - "Bom é que não esqueçais", Ibn Ammar

Bom é que não esqueçais
Que o que dá ao amor rara qualidade
É a sua timidez envergonhada.
Entregai-vos ao travo doce das delícias
Que filhas são dos seus tormentos.
Porém, não busqueis poder no amor...
Que só quem da sua lei se sente escravo
Pode considerar-se realmente livre.

(versão de Adalberto Alves)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

#79 - CANÇÃO, António Botto

Vem surgindo a madrugada.
Entro agora num dancing.

Numa guitarra que tange
Oiço a mágoa do meu sonho.

Há vestígios de batalha:
Nódoas de vinho,
E alguns pratos
Com restos de carne, -- e o cheiro
A tabaco e a febre e a flores
Paira
Na sala como um cansaço...

Triste,
Vou lembrando os meus amores.

Além,
Naquela mesa do fundo,
Naquela mesa redonda,
Um homem
Descasca uma tangerina
E vai beijando e mordendo
A mulher franzina e feia
Que ao pé dele fuma e sorri...

Vou lembrando os meus amores!

E até me lembro
Daqueles
Que partiram para sempre...

--Mas, não me lembro de ti.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

#78 - "Ao meu coração um peso de ferro", Camilo Pessanha

Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
      Lançá-lo ao mar.

Quem vai embarcar, que vai degredado,
As penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
      Lançai-o ao mar.

E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta...
-- A última, de antes do teu noivado.

A sete chaves, -- a carta encantada!
E um lenço bordado... Esse hei-de o levar.
Que é para o molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

#77 - ELEGIA, Aluizio de Medeiros

Não fales no filho
que não conheci.
Os olhos, disseram,
como os do pai
eram tristes;
da mãe tinha a boca
o nariz também.
Por três segundos
respirou, disseram.
Morreu depois.
O mundo deixou-lhe 
a marca, disseram, 
numa injeção que tomou.
Coberto de lágrimas
foi e não voltou.
Não fales no filho
que não conheci.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

#76 - "Os anos vêm e vão", Heinrich Heine

Os anos vêm e vão,
gerações baixam à terra,
mas nunca em meu coração
fenece o amor que ele encerra...

E só quisera, ao morrer,
quando a esperança é já finda,
de joelhos vos dizer:
Senhora, eu vos amo ainda!

(tradução: Luís Cardim)

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

#75 - SONETO, Darcy Damasceno

Quem te sonhara plasma de água e canto,
Límpida e nua, rosa de cristal,
Substância de silêncio concentrado
Egressa de meu sonho para o azul.

Quem te cantara acima de meu sonho,
-- Quedo este amor -- só puro pensamento
E corpo nu, beleza fabulosa
Que a morte apenas torna perdurável.

Não mais meu canto, que hoje serenado,
Pastor de sombras, te transmuta em símbolos,
Alheio ao tempo, junto a um velho rio.

Não mais o sonho, agora solitário;
Amor não mais, que, a vida alimentando,
Flui subterrâneo, em mito transformado.

domingo, 18 de janeiro de 2015

#74 - «Eu, louçana, en quant' eu viva for», Martim de Padroselos

Eu, louçana, en quant' eu viva for,
nunca já mais creerei per amor,
     pois [que] me mentiu o que namorei,
     nunca já mais per amor creerei,
     pois que mi mentiu o que namorei.

E, pois m' el foi a seu grado mentir,
des oimais me quer' eu d'amor partir,
     pois [que] me mentiu o que namorei,
     nunca já mais per amor creerei,
     pois que mi mentiu o que namorei.

E, direi-vos que lhi farei por en:
d'amor non quero seu mal, nen seu ben,
     pois [que] me mentiu o que namorei,
     nunca já mais per amor creerei,
     pois que mi mentiu o que namorei.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

#73 - "Ao teu lado, mudo", Nuno Rocha Morais

                                                            Invadiu-me uma sensação de calma,
                                                            de tristeza e de fim.

                                                            VIRGINA WOOLF
Ao teu lado, mudo.
Suponho que pousei a mão
No teu ombro, não sei,
Ausentes ambos,
Tu do ombro, eu da mão.
Lá fora, não muito longe
Do vidro, a manhã passa
E é calma, tristeza, fim.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

#72 - "Non chegou, madr', o meu amigo", D. Dinis

Non chegou, madr', o meu amigo,
e oj' est' o prazo saído!
          Ai, madre, moiro d'amor!

Non chegou, madr', o meu amado,
e oj' est' o prazo passado!
          Ai, madre, moiro d'amor!

E oj' est' o prazo saído!
Por que mentiu o desmentido?
           Ai, madre, moiro d'amor!

E oj' est' o prazo passado!
Por que mentiu o prejurado?
          Ai, madre, moiro d'amor!

Por que mentiu o perjurado,
pesa-mi, pois mentiu a seu grado.
          Ai, madre, moiro d'amor!

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

#71 - SONETO, Alberto da Costa e Silva,

Cerâmica e tear: as mãos trabalham
e constroem o amor num fim de tarde
como jarro de rústico gargalo
ou fino pano arcaico. Sôbre o barro

põem desenhos mais jovens de suaves
moças dançando e restos de paisagens
da infância e da montanha: perfis núbios
sôbre o vermelho poente desse jarro.

E a substância mais tímida do sonho
nas mãos do artesão faz de seu pranto
e cismas, riso e ardor, tecido raro

em que se borda uma novilha, bela
como o beijo em setembro, em que se fez
o amor com outro fio e um outro barro.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

#70 - UN SECRET, Félix Arvers

Mon âme a son secret, ma vie a son mystère:
Un amour éternel en un moment conçu;
Le mal est sans espoir, aussi j'ai dû le taire,
Et celle qui l'a fait n'en a jamais rien su.

Hélas! j'aurai passé près d'elle inaperçu,
Toujours a ses côtés, et pourtant solitaire,
Et j'aurai jusqu'au bout fait mon temps sur la terre,
N'osant rien demander et n'ayant rien reçu.

Pour elle, quoique Dieu l'ait faite douce et tendre,
Elle ira son chemin, distraite, et sans entendre
Ce murmure d'amour élevé sur ses pas;

A l'austère devoir pieusement fidèle,
Elle dira, lisant ces verses tout remplis d'elle:
"Quelle est donc cette femme?" et ne comprendera pas.