terça-feira, 30 de dezembro de 2014

#69- "Quando grisalha e velha e mais de sono cheia", W. B. Yeats

Quando grisalha e velha e mais de sono cheia
Cabeceares à lareira, pega nestes versos
E lê-os devagar, e lembra os universos
Do teu olhar de outrora, tão profunda teia;

E quantos tanto amaram teu alegre encanto,
Como tua beleza em falso ou vero amor,
E um só foi quem amou de tua alma o ardor
E do teu rosto a mágoa do mutável pranto.

Curvada então ao lado das ardentes brasas
Murmura um pouco triste que o Amor se afastou.
Nos sobranceiros montes vagueante andou,
E seu rosto escondeu na multidão dos astros.

(versão de Jorge de Sena)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

#68 - LUGAR AO SOL, Eugénio de Andrade

Há um lugar na mesa onde a luz
Abdicou do seu ofício.
Já foi o sol
e do trigo esse lugar -- agora
por mais que escutes, não voltarás
a ouvir a voz de quem,
há muitos anos, era a delicadeza
da terra a falar: «Não sujes
a toalha»; «Não comes a maçã?»
Também já não há quem se debruce
Na janela para sentir
O corpo atravessado pela manhã.
Talvez só um ou outro verso
consiga juntar no seu ritmo
luz, voz, maçã.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

#67 - "O céu, a terra, o vento sossegado...", Luís de Camões

O céu, a terra, o vento sossegado...
As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...

O pescador Aónio que, deitado
Onde co o vento a água se meneia.
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não pode ser mais que nomeado:

-- Ondas, dizia, antes que Amor me mate,
Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
Me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe ao vento a voz, que ao vento deita.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

#66 - "Se eu podesse desamar", Pero da Ponte

Se eu podesse desamar
a que[n] me sempre desamou,
e podess' algun mal buscar
a quen me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

Mais non poss' eu enganar
meu coraçon, que m' enganou,
por quanto me fez desejar
a quen me nunca desejou.
E por esto non dormio eu
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

Mais rog' a Deus que desempar
a quen m' assi desamparou,
vel que podess' eu destorvar
a quen me sempre destorvou.
E logo dormiria eu,
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

Vel que ousass' eu preguntar
a quen me nunca preguntou,
por que me fez em si cuidar,
pois ela nunc' en mi cuidou.
E por esto lazeiro eu,
     se eu podesse coita dar
     a quen me sempre coita deu.

domingo, 14 de dezembro de 2014

#65 - ODE, Fernando Pessoa / Ricardo Reis

Já sobre a fronte vã se me acinzenta
O cabelo do jovem que perdi.
          Meus olhos brilham menos.
Já não tem jus a beijos minha boca.
Se me ainda amas, por amor não ames:
          Traíras-me comigo.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

#64 - SONETO DE FIDELIDADE, Vinicius de Moraes

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei-de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quanto mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.