domingo, 26 de outubro de 2014

#49 - POEMA CONFIADO À MEMÓRIA DE NORA MITRANI, Alexandre O'Neill

Se eu pudesse dizer-te: -- Senta aqui
nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,
ó amável bichinho, o pêlo fino;
depois, a contra-pêlo, provocar-te!
Se eu pudesse juntar o mesmo fio
(infinito colar!) cada arrepio
que aos viajeiros comprazidos dedos
fizesse descobrir novos enredos!
Se eu pudesse fechar-te nesta mão,
tecedeira fiel de tantas linhas,
de tanto enredo imaginário, vão,
e incitar alguém: -- Vê se adivinhas...
      Então um fértil jogo amor seria.
      Não este descerrar a mão vazia!

sábado, 25 de outubro de 2014

#48 - DÚVIDA, João de Barros

Este -- o soneto da Saudade inquieta
Em que, lembrando as horas de paixão,
Pergunta à Musa o sonho do Poeta
Se ela é fiel à sua adoração...

Este -- o ritmo de amor em que, discreta
E oculta e desejosa de ilusão,
Minh'alma balbucia a dor secreta
De nunca dominar teu coração...

Este -- o soneto do viver profundo,
Em que a frase mais pobre é todo um mundo
De incerteza, de mágoa e puro ardor...

Vai para ti meu coração veemente...
-- Mas tu, Amor, se existes realmente,
Nem mesmo sabes que és o meu Amor!

domingo, 19 de outubro de 2014

#47 - A UMA MULHER, Vinicius de Moraes

Quando a madrugada entrou eu estendi o meu peito nu sôbre o
                                                                                             [teu peito
Estavas trêmula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que fôste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente fôste a serenidade.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

#46 - "A meio do caminho", Helder Macedo

A meio do caminho
a mais de meia vida já vivida
reencontrei-me só na selva escura
da vida indecifrada
e não sei de que lado está a morte
e não sei se é o amor quem a sustenta
no tempo
que chegou
de destruir
para ver o que seja o que me sobra
no certo entendimento
de que as vidas são feitas
no perdê-las
ou nisso só existem
porque há vida somente quando há morte
e porque toda a selva
por mais cerrada e escura
contém o tempo já do seu deserto
na fértil luz difusa que a penetra
para nela executar o seu amor.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

#45 - AS MÃOS, Torquato da Luz

Tenho para te dar as mãos vazias
e pouco mais, mas olha como são
as minhas mãos, que outrora foram frias
e hoje ardem ao calor da emoção
de sentir como espantam as sombrias
noites em que o negrume e a solidão
eram a manta com que te cobrias.